
O amor e o impossível: uma entrevista com o psicanalista Jacques-Alain
Miller*
O
amor é um tema universal que desperta as mais variadas reflexões. O
que, afinal, significa amar verdadeiramente? Na Psicanálise, não
trabalhamos com respostas únicas e conclusivas. Ao contrário, buscamos
ampliar a compreensão dos acontecimentos humanos. É disso que se trata a
entrevista abaixo, sobre amor, com o psicanalista lacaniano
Jacques-Alain Miller. A entrevista foi concedida à Hanna Waar, do Psychologies Magazine*, tradução de Maria do Carmo Dias Batista. Vale a leitura!
Eis, a entrevista:
A psicanálise ensina alguma coisa sobre o amor?
Muito,
pois é uma experiência cuja fonte é o amor. Trata-se desse amor
automático, e freqüentemente inconsciente, que o analisando dirige ao
analista e que se chama transferência. É um amor fictício, mas é do
mesmo estofo que o amor verdadeiro. Ele atualiza sua mecânica: o amor se
dirige àquele que a senhora pensa que conhece sua verdade verdadeira.
Porém, o amor permite imaginar que essa verdade será amável, agradável,
enquanto ela é, de fato, difícil de suportar.
Então, o que é amar verdadeiramente?
Amar
verdadeiramente alguém é acreditar que, ao amá-lo, se alcançará a uma
verdade sobre si. Ama-se aquele ou aquela que conserva a resposta, ou
uma resposta, à nossa questão “Quem sou eu?”.
Por que alguns sabem amar e outros não?
Alguns
sabem provocar o amor no outro, os serial lovers – se posso dizer –
homens e mulheres. Eles sabem quais botões apertar para se fazer amar.
Porém, não necessariamente amam, mais brincam de gato e rato com suas
presas. Para amar, é necessário confessar sua falta e reconhecer que se
tem necessidade do outro, que ele lhe falta. Os que creem ser completos
sozinhos, ou querem ser, não sabem amar. E, às vezes, o constatam
dolorosamente. Manipulam, mexem os pauzinhos, mas do amor não conhecem
nem o risco, nem as delícias.
“Ser completo sozinho”: só um homem pode acreditar nisso…
Acertou!
“Amar, dizia Lacan, é dar o que não se tem”. O que quer dizer: amar é
reconhecer sua falta e doá-la ao outro, colocá-la no outro. Não é dar o
que se possui, os bens, os presentes: é dar algo que não se possui, que
vai além de si mesmo. Para isso, é preciso se assegurar de sua falta, de
sua “castração”, como dizia Freud. E isso é essencialmente feminino. Só
se ama verdadeiramente a partir de uma posição feminina. Amar feminiza.
É por isso que o amor é sempre um pouco cômico em um homem. Porém, se
ele se deixa intimidar pelo ridículo, é que, na realidade, não está
seguro de sua virilidade.
Amar seria mais difícil para os homens?
Ah,
sim! Mesmo um homem enamorado tem retornos de orgulho, assaltos de
agressividade contra o objeto de seu amor, porque esse amor o coloca na
posição de incompletude, de dependência. É por isso que pode desejar as
mulheres que não ama, a fim de reencontrar a posição viril que coloca em
suspensão quando ama. Esse princípio Freud denominou a “degradação da
vida amorosa” no homem: a cisão do amor e do desejo sexual.
E nas mulheres?
É
menos habitual. No caso mais freqüente há desdobramento do parceiro
masculino. De um lado, está o amante que as faz gozar e que elas
desejam, porém, há também o homem do amor, feminizado, funcionalmente
castrado. Entretanto, não é a anatomia que comanda: existem as mulheres
que adotam uma posição masculina. E cada vez mais. Um homem para o amor,
em casa; e homens para o gozo, encontrados na Internet, na rua, no
trem…
Por que “cada vez mais”?
Os
estereótipos socioculturais da feminilidade e da virilidade estão em
plena mutação. Os homens são convidados a acolher suas emoções, a amar, a
se feminizar; as mulheres, elas, conhecem ao contrário um certo
“empuxo-ao-homem”: em nome da igualdade jurídica são conduzidas a
repetir “eu também”. Ao mesmo tempo, os homossexuais reivindicam os
direitos e os símbolos dos héteros, como casamento e filiação. Donde uma
grande instabilidade dos papéis, uma fluidez generalizada do teatro do
amor, que contrasta com a fixidez de antigamente. O amor se torna
“líquido”, constata o sociólogo Zygmunt Bauman (1).
Cada um é levado a inventar seu próprio “estilo de vida” e a assumir
seu modo de gozar e de amar. Os cenários tradicionais caem em lento
desuso. A pressão social para neles se conformar não desapareceu, mas
está em baixa.
“O amor é sempre recíproco”, dizia Lacan. Isso ainda é verdade no contexto atual? O que significa?
Repete-se
esta frase sem compreendê-la ou compreendendo-a mal. Ela não quer dizer
que é suficiente amar alguém para que ele vos ame. Isso seria absurdo.
Quer dizer: “Se eu te
amo é que tu és amável. Sou eu que amo, mas tu, tu também estás
envolvido, porque há em ti alguma coisa que me faz te amar. É recíproco
porque existe um vai-e-vem: o amor que tenho por ti é efeito do retorno
da causa do amor que tu és para mim. Portanto, tu não estás aí à toa.
Meu amor por ti não é só assunto meu, mas teu também. Meu amor diz
alguma coisa de ti que talvez tu mesmo não conheças”. Isso não
assegura, de forma alguma, que ao amor de um responderá o amor do outro:
isso, quando isso se produz, é sempre da ordem do milagre, não é
calculável por antecipação.
Não se encontra seu ‘cada um’, sua ‘cada uma’ por acaso. Por que ele? Por que ela?
Existe
o que Freud chamou de Liebesbedingung, a condição do amor, a causa do
desejo. É um traço particular – ou um conjunto de traços – que tem para
cada um função determinante na escolha amorosa. Isto escapa totalmente
às neurociências, porque é próprio de cada um, tem a ver com sua
história singular e íntima. Traços às vezes ínfimos estão em jogo.
Freud, por exemplo, assinalou como causa do desejo em um de seus
pacientes um brilho de luz no nariz de uma mulher!
É difícil acreditar em um amor fundado nesses elementos sem valor, nessas baboseiras!
A
realidade do inconsciente ultrapassa a ficção. A senhora não tem ideia
de tudo o que está fundado, na vida humana, e especialmente no amor, em
bagatelas, em cabeças de alfinete, os “divinos detalhes”. É verdade que,
sobretudo no macho, se encontram tais causas do desejo, que são como
fetiches cuja presença é indispensável para desencadear o processo
amoroso. As particularidades miúdas, que relembram o pai, a mãe, o
irmão, a irmã, tal personagem da infância, também têm seu papel na
escolha amorosa das mulheres. Porém, a forma feminina do amor é, de
preferência, mais erotômana que fetichista: elas querem ser amadas, e o
interesse, o amor que alguém lhes manifesta, ou que elas supõem no
outro, é sempre uma condição sine qua non para desencadear seu amor, ou,
pelo menos, seu consentimento. O fenômeno é a base da corte masculina.
O senhor atribui algum papel às fantasias?
Nas
mulheres, quer sejam conscientes ou inconscientes, são mais
determinantes para a posição de gozo do que para a escolha amorosa. E é o
inverso para os homens. Por exemplo, acontece de uma mulher só
conseguir obter o gozo – o orgasmo, digamos – com a condição de se
imaginar, durante o próprio ato, sendo batida, violada, ou de ser uma
outra mulher, ou ainda de estar ausente, em outro lugar.
E a fantasia masculina?
Está bem evidente no amor à primeira vista. O exemplo clássico, comentado por Lacan, é, no romance de Goethe (2),
a súbita paixão do jovem Werther por Charlotte, no momento em que a vê
pela primeira vez, alimentando ao numeroso grupo de crianças que a
rodeiam. Há aqui a qualidade maternal da mulher que desencadeia o amor.
Outro exemplo, retirado de minha prática, é este: um patrão
qüinquagenário recebe candidatas a um posto de secretária. Uma jovem
mulher de 20 anos se apresenta; ele lhe declara de imediato seu fogo.
Pergunta-se o que o tomou, entra em análise. Lá, descobre o
desencadeante: ele havia nela reencontrado os traços que evocavam o que
ele próprio era quando tinha 20 anos, quando se apresentou ao seu
primeiro emprego. Ele estava, de alguma forma, caído de amores por ele
mesmo. Reencontra-se nesses dois exemplos, as duas vertentes
distinguidas por Freud: ama-se ou a pessoa que protege, aqui a mãe, ou a
uma imagem narcísica de si mesmo.
Tem-se a impressão de que somos marionetes!
Não,
entre tal homem e tal mulher, nada está escrito por antecipação, não há
bússola, nem proporção pré-estabelecida. Seu encontro não é programado
como o do espermatozóide e do óvulo; nada a ver também com os genes. Os
homens e as mulheres falam, vivem num mundo de discurso, e isso é
determinante. As modalidades do amor são ultra-sensíveis à cultura
ambiente. Cada civilização se distingue pela maneira como estrutura a
relação entre os sexos. Ora, acontece que no Ocidente, em nossas
sociedades ao mesmo tempo liberais, mercadológicas e jurídicas, o
“múltiplo” está passando a destronar o “um”. O modelo ideal do “grande
amor de toda a vida” cede, pouco a pouco, terreno para o speed dating, o
speed loving e toda floração de cenários amorosos alternativos,
sucessivos, inclusive simultâneos.
E o amor no tempo, em sua duração? Na eternidade?
Dizia Balzac: “Toda paixão que não se acredita eterna é repugnante” (3).
Entretanto, pode o laço se manter por toda a vida no registro da
paixão? Quanto mais um homem se consagra a uma só mulher, mais ela tende
a ter para ele uma significação maternal: quanto mais sublime e
intocada, mais amada. São os homossexuais casados que melhor desenvolvem
esse culto à mulher: Aragão canta seu amor por Elsa; assim que ela
morre, bom dia rapazes! E quando uma mulher se agarra a um só homem, ela
o castra. Portanto, o caminho é estreito. O melhor caminho do amor
conjugal é a amizade, dizia, de fato, Aristóteles.
O problema é que os homens dizem não compreender o que querem as mulheres; e as mulheres, o que os homens esperam delas…
Sim.
O que faz objeção à solução aristotélica é que o diálogo de um sexo ao
outro é impossível, suspirava Lacan. Os amantes estão, de fato,
condenados a aprender indefinidamente a língua do outro, tateando,
buscando as chaves, sempre revogáveis. O amor é um labirinto de mal
entendidos onde a saída não existe.
________
(1) Zygmunt Bauman, L’amour liquide, de la fragilité des liens entre les hommes (Hachette Littératures, « Pluriel », 2008)
(2) Les souffrances du jeune Werther de Goethe (LGF, « le livre de poche », 2008).
(3) Honoré de Balzac in La comédie humaine, vol. VI, « Études de mœurs : scènes de la vie parisienne » (Gallimard, 1978).
(2) Les souffrances du jeune Werther de Goethe (LGF, « le livre de poche », 2008).
(3) Honoré de Balzac in La comédie humaine, vol. VI, « Études de mœurs : scènes de la vie parisienne » (Gallimard, 1978).
*Fonte: Psychologies
Magazine, outubro 2008, n° 278 – Entrevista realizada por Hanna Waar.
[tradução de Maria do Carmo Dias Batista]. Reproduzida por: psicanaliseblog.
Mais sobre Jacques-Alain Miller
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